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Para Thaís Corsetti
Bons lutadores jamais interrompem a respiração. Sob pesada sova ou para o ataque feroz é a respiração que oferece ao atleta a carnadura mais vigorosa. Gladiadores, samurais e mitos do boxe de todos os tempos não ignoraram esta discreta capoeira.
O que passo a contar pode ser consultado na honorável biblioteca de Inverary, em Glasgow, onde estive na última virada de século a ler, com grande fervor, tudo sobre a trajetória e o mito de Aretha James Noftenhill. Esguia boxeadora estadunidense de ascendência dominicana, ela dominou com assombrosa facilidade os campeonatos nacionais e internacionais de médio-ligeiras da primeira metade da década de setenta. E inscreveu seu nome no folclore dos ringues graças ao inusitado método em que se esmerou para aliciar o tempo.
O misterioso fim da vida de Noftenhill é motivo de apaixonada polêmica entre velhos fãs de boxe de todo o mundo. Ela não era bela, os olhos demasiado pertos um do outro e os lábios assimétricos a prejudicavam; mas compunham hipnótica a face da fera, “olhos de tigre numa cara de gorila.” Bailarina dos ringues, boxeava como um anjo, com graça e violência.
A uma edição do Chicago Press hoje amarelenta o lendário Cassius Clay, tendo assistido a dois combates de Aretha James, declarou que ela, para receber um soco inevitável; “recuava e cedia o corpo com a resignação da água que acolhe o mergulhador.”
Quando se preparava para a terceira defesa do título nacional – dessa vez contra uma ruivinha empertigada de Kentucky – Aretha James revelou ao Illinois Magazine que não saía de casa sem levar, no bolso esquerdo da camisa, o velho roscofe herdado do avô materno. Era o começo do mito. Uma fotografia de quarto de página, em preto e branco, eternizou a diminuta máquina na memória dos fãs da lutadora. O roscofe tinha mesmo uns ares respeitáveis de eternidade, numerais romanos e adornos arabescos prenunciavam o tatibitate pesado e seguro. Com ele Aretha trabalhava em silêncio, no dia a dia, o compasso da respiração. Lutar, para ela, foi um sacerdócio.
Encerrada a quinta temporada vitoriosa, a crônica esportiva comemorou Aretha James Noftenhill caçando a alcunha de “meteórica” que a acompanhara desde o início da carreira. Nas páginas de um Washington Post de sábado o polêmico cronista Ted Murdoch brincou a respeito do destino de cair dos meteoros, “tão diverso dos calcanhares alados de Aretha James, cujos pés bailarinos, em ação, pouco tocam o chão dos ringues.”
A notícia da intempestiva aposentadoria da lutadora atingiu os comentaristas esportivos em pleno voo, obrigando-os girar em torno de si aos olhos do público feito panquecas na frigideira. A versão oficial, apresentada em coletiva de imprensa em junho de 1976, creditou a aposentadoria a terríveis dores nos joelhos; dado que, sem convencer, acentuou o mistério sobre o desenredo da lutadora.
Uma biografia não autorizada, de edição grosseira e produzida à toque de caixa, faturou alto conspirando sobre o enlouquecimento da campeã. Exilada em seu tempo fleumático inventado ela teria oscilado entre a paranoia e a melancolia por meses a fio.
A capa do The New York Times de 19 de setembro de 1976 destacou em foto noturna um similar ao rijo e improvável Ford TT 1946, preto, que veio do passado e atravessou a madrugada para atropelar Aretha James Noftenhill num cruzamento ermo de Chicago. Por três dias e três noites a vida, a febre e a morte disputaram-na no leito do hospital.
Nos bares e nos ginásios, à boca pequena, a morte de Noftenhill foi atribuída ao submundo das apostas. Com os boatos, a biografia não autorizada logo caiu no esquecimento.
Norman Mailer assinou o perfil mais afamado de Noftenhill, publicado na ducentésima terceira edição de The People. O laureado escritor anotou que na noite em que a morte veio para levá-la uma chuva calma e obstinada lavou Chicago; “Noftenhill pegou o carro disposta a fugir de casa, da cidade, de sua vida. Levou consigo, numa caixa de sapatos, o roscofe, um lenço branco de bolso com quatro níqueis furados amarrados nas pontas e meia dúzia de lembranças menores do boxe. Mas não foi muito longe. Tendo abandonado o carro nas imediações da academia, um chapéu preto de aba larga galgou sua cabeça e ela se pôs a caminhar até a esquina. Então parou. Ergueu a gola da longa casaca de gabardine, sacou da caixa o roscofe, colocou-o no bolso esquerdo e ganhou a rua sem olhar para os lados.” Muitos criticaram o estilo telegráfico de Mailer.
Aretha James Noftenhill foi uma corsa leve, ágil e selvagem.
O que passo a contar pode ser consultado na honorável biblioteca de Inverary, em Glasgow, onde estive na última virada de século a ler, com grande fervor, tudo sobre a trajetória e o mito de Aretha James Noftenhill. Esguia boxeadora estadunidense de ascendência dominicana, ela dominou com assombrosa facilidade os campeonatos nacionais e internacionais de médio-ligeiras da primeira metade da década de setenta. E inscreveu seu nome no folclore dos ringues graças ao inusitado método em que se esmerou para aliciar o tempo.
O misterioso fim da vida de Noftenhill é motivo de apaixonada polêmica entre velhos fãs de boxe de todo o mundo. Ela não era bela, os olhos demasiado pertos um do outro e os lábios assimétricos a prejudicavam; mas compunham hipnótica a face da fera, “olhos de tigre numa cara de gorila.” Bailarina dos ringues, boxeava como um anjo, com graça e violência.
A uma edição do Chicago Press hoje amarelenta o lendário Cassius Clay, tendo assistido a dois combates de Aretha James, declarou que ela, para receber um soco inevitável; “recuava e cedia o corpo com a resignação da água que acolhe o mergulhador.”
Quando se preparava para a terceira defesa do título nacional – dessa vez contra uma ruivinha empertigada de Kentucky – Aretha James revelou ao Illinois Magazine que não saía de casa sem levar, no bolso esquerdo da camisa, o velho roscofe herdado do avô materno. Era o começo do mito. Uma fotografia de quarto de página, em preto e branco, eternizou a diminuta máquina na memória dos fãs da lutadora. O roscofe tinha mesmo uns ares respeitáveis de eternidade, numerais romanos e adornos arabescos prenunciavam o tatibitate pesado e seguro. Com ele Aretha trabalhava em silêncio, no dia a dia, o compasso da respiração. Lutar, para ela, foi um sacerdócio.
Encerrada a quinta temporada vitoriosa, a crônica esportiva comemorou Aretha James Noftenhill caçando a alcunha de “meteórica” que a acompanhara desde o início da carreira. Nas páginas de um Washington Post de sábado o polêmico cronista Ted Murdoch brincou a respeito do destino de cair dos meteoros, “tão diverso dos calcanhares alados de Aretha James, cujos pés bailarinos, em ação, pouco tocam o chão dos ringues.”
A notícia da intempestiva aposentadoria da lutadora atingiu os comentaristas esportivos em pleno voo, obrigando-os girar em torno de si aos olhos do público feito panquecas na frigideira. A versão oficial, apresentada em coletiva de imprensa em junho de 1976, creditou a aposentadoria a terríveis dores nos joelhos; dado que, sem convencer, acentuou o mistério sobre o desenredo da lutadora.
Uma biografia não autorizada, de edição grosseira e produzida à toque de caixa, faturou alto conspirando sobre o enlouquecimento da campeã. Exilada em seu tempo fleumático inventado ela teria oscilado entre a paranoia e a melancolia por meses a fio.
A capa do The New York Times de 19 de setembro de 1976 destacou em foto noturna um similar ao rijo e improvável Ford TT 1946, preto, que veio do passado e atravessou a madrugada para atropelar Aretha James Noftenhill num cruzamento ermo de Chicago. Por três dias e três noites a vida, a febre e a morte disputaram-na no leito do hospital.
Nos bares e nos ginásios, à boca pequena, a morte de Noftenhill foi atribuída ao submundo das apostas. Com os boatos, a biografia não autorizada logo caiu no esquecimento.
Norman Mailer assinou o perfil mais afamado de Noftenhill, publicado na ducentésima terceira edição de The People. O laureado escritor anotou que na noite em que a morte veio para levá-la uma chuva calma e obstinada lavou Chicago; “Noftenhill pegou o carro disposta a fugir de casa, da cidade, de sua vida. Levou consigo, numa caixa de sapatos, o roscofe, um lenço branco de bolso com quatro níqueis furados amarrados nas pontas e meia dúzia de lembranças menores do boxe. Mas não foi muito longe. Tendo abandonado o carro nas imediações da academia, um chapéu preto de aba larga galgou sua cabeça e ela se pôs a caminhar até a esquina. Então parou. Ergueu a gola da longa casaca de gabardine, sacou da caixa o roscofe, colocou-o no bolso esquerdo e ganhou a rua sem olhar para os lados.” Muitos criticaram o estilo telegráfico de Mailer.
Aretha James Noftenhill foi uma corsa leve, ágil e selvagem.
Croniqueta do livro "Eu, anão do meu jardim".
À venda em bares e revistarias tricoronárias, ou por meio do e-mail renatodebrito@gmail.com .
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito bom! O dom "das palavras" lhe foi dado e você o usa sabiamente! Quando ouvi a primeira vez um professor falar: "As palavras tem sabor", realmente é algo que quem gosta de ler entende! Quando lançar o livro só falar!
ResponderExcluirGenial, bom amigo.
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