terça-feira, 7 de junho de 2016

CONFESSIONÁRIO

Lelo de Brito in Eu, anão do meu jardim
O CRONISTA

Para a minha irmã Andréia, 
pelo aniversário.

Sou o cronista, um trabalhador braçal da palavra. 

Canhoto com mão e destro com o pé, persigo histórias apagadas pelo Dilúvio. 

Pois que a boa escritura passa também pelos pés. Foi com eles que nos iniciamos no relato. Sem narrativas não se compõem caminhos, mas somente movimento autômato. Foram os pés as primeiras mãos da espécie, com que traçamos no mundo as primeiras orações rumo à humanidade. Ah, a humanidade, perdida para nós, de que somos reles expressão teatral embaciada.

É por força herege a tudo que escrevo. Por absoluta falta de caráter. Eu não tenho caráter, nem identidade. Para quê? Muito tarde fui apresentado a Aristóteles e Kant, e aprendi deles pouco e mal. Não me censuro. Pessoas de caráter têm feito vergonhas medonhas, lê-se nos jornais. 

Lelo de Brito na civilização
Em sociedade, antes de abandoná-la e à seriedade, o posto de maior prestígio em que fracassei foi o de professor universitário. Ora, vá lá, não ignoro que há homens realmente superiores, que vão à lua e andam sobre o mar como se andassem na rua. Não me gabo de mim, nem de prestígios da universidade brasileira. Sem ter sido superior ou duradoira, a docência em que fali a deixei por inaptidão para a seriedade. O diagnóstico é psiquiátrico. 

Antes de trocar a sociedade pela literatura eu era confuso. Sentia a sério que nada era muito sério no Brasil. Parecia-me que no Brasil o responsável nunca estava: que sempre e sempre ele tinha saído para um cafezinho, para dar uma carona à filha até o shopping. E,  no trânsito, nas ruas e saguões eram todos graves, seriíssimos. E mais, furiosos. O brasileiro que vai daqui para ali é o furioso nato. Rodrigueano - conheci um jovem roqueiro de nome Saldanha que desconhecia Nelson Rodrigues, mas aí é outra história.

Sem saída, escrevo por falta de um navio com roda de pás lateral em que eu fuja de Três Corações pelo rio Verde. Três Corações, se ignoras, é um buraco em que se cai, é um cu donde não se sai. E não por isso eu escrevo. Em homenagem à cidadela tricoronária, escrevo por troca da chance que ela me dá de ir bêubo rua fora à noite e topar com um cometa. 

No reino em que vivo e me criei, vi tudo e descabacei El Rei.
Rei Pelé e Lelo de Brito
Fotografia: Ricardo Marcato
Escrevo, a rigor, por não ter nascido persa: se o tivesse venderia tapetes voadores de segunda mão. Porque meu sentimento do mundo é o de ser eu um barco rebocador de navios, preto, sujo e obstinado. 

Ah, que nos entretermos com sandices assim de nada sirva a alguém. Pensar, que importa? Pensar é uma bobagem grega. Nada valerá mais que a desobstrução do gesto e da palavra, das vozes e contam e cantam. Ainda que vozes em croniquetas que se vendem em rodoviárias. 

Sou apenas um ameríndio, afinal. Um cronista mulato, descendente de povos capazes de ouvir crescer a grama e de enxergar através da neblina. Um retirado da sociedade, desinteressado da vida, que vive entre vozes e palavras vãs. Que sabe que se pode falhar tanto em companhia como em solidão. E escreve. 

Quem lê?

(o final não é feliz, histórias alegres irritam)


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“Eu, anão do meu jardim” não seria impresso sem o apoio da