domingo, 14 de agosto de 2016

Um anão de jardim: entrevistreta




Confira no blogue lavrense O corvo-veloz, do jornalista Sebastião Filho, a entrevistreta que concedi, em Los Angeles, Califórnia, à Ricardo Marcato. Clique aqui


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terça-feira, 7 de junho de 2016

CONFESSIONÁRIO

Lelo de Brito in Eu, anão do meu jardim
O CRONISTA

Para a minha irmã Andréia, 
pelo aniversário.

Sou o cronista, um trabalhador braçal da palavra. 

Canhoto com mão e destro com o pé, persigo histórias apagadas pelo Dilúvio. 

Pois que a boa escritura passa também pelos pés. Foi com eles que nos iniciamos no relato. Sem narrativas não se compõem caminhos, mas somente movimento autômato. Foram os pés as primeiras mãos da espécie, com que traçamos no mundo as primeiras orações rumo à humanidade. Ah, a humanidade, perdida para nós, de que somos reles expressão teatral embaciada.

É por força herege a tudo que escrevo. Por absoluta falta de caráter. Eu não tenho caráter, nem identidade. Para quê? Muito tarde fui apresentado a Aristóteles e Kant, e aprendi deles pouco e mal. Não me censuro. Pessoas de caráter têm feito vergonhas medonhas, lê-se nos jornais. 

Lelo de Brito na civilização
Em sociedade, antes de abandoná-la e à seriedade, o posto de maior prestígio em que fracassei foi o de professor universitário. Ora, vá lá, não ignoro que há homens realmente superiores, que vão à lua e andam sobre o mar como se andassem na rua. Não me gabo de mim, nem de prestígios da universidade brasileira. Sem ter sido superior ou duradoira, a docência em que fali a deixei por inaptidão para a seriedade. O diagnóstico é psiquiátrico. 

Antes de trocar a sociedade pela literatura eu era confuso. Sentia a sério que nada era muito sério no Brasil. Parecia-me que no Brasil o responsável nunca estava: que sempre e sempre ele tinha saído para um cafezinho, para dar uma carona à filha até o shopping. E,  no trânsito, nas ruas e saguões eram todos graves, seriíssimos. E mais, furiosos. O brasileiro que vai daqui para ali é o furioso nato. Rodrigueano - conheci um jovem roqueiro de nome Saldanha que desconhecia Nelson Rodrigues, mas aí é outra história.

Sem saída, escrevo por falta de um navio com roda de pás lateral em que eu fuja de Três Corações pelo rio Verde. Três Corações, se ignoras, é um buraco em que se cai, é um cu donde não se sai. E não por isso eu escrevo. Em homenagem à cidadela tricoronária, escrevo por troca da chance que ela me dá de ir bêubo rua fora à noite e topar com um cometa. 

No reino em que vivo e me criei, vi tudo e descabacei El Rei.
Rei Pelé e Lelo de Brito
Fotografia: Ricardo Marcato
Escrevo, a rigor, por não ter nascido persa: se o tivesse venderia tapetes voadores de segunda mão. Porque meu sentimento do mundo é o de ser eu um barco rebocador de navios, preto, sujo e obstinado. 

Ah, que nos entretermos com sandices assim de nada sirva a alguém. Pensar, que importa? Pensar é uma bobagem grega. Nada valerá mais que a desobstrução do gesto e da palavra, das vozes e contam e cantam. Ainda que vozes em croniquetas que se vendem em rodoviárias. 

Sou apenas um ameríndio, afinal. Um cronista mulato, descendente de povos capazes de ouvir crescer a grama e de enxergar através da neblina. Um retirado da sociedade, desinteressado da vida, que vive entre vozes e palavras vãs. Que sabe que se pode falhar tanto em companhia como em solidão. E escreve. 

Quem lê?

(o final não é feliz, histórias alegres irritam)


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“Eu, anão do meu jardim” não seria impresso sem o apoio da 


terça-feira, 10 de maio de 2016

A BOXEADORA


imagem ilustrativa


Para Thaís Corsetti

Bons lutadores jamais interrompem a respiração. Sob pesada sova ou para o ataque feroz é a respiração que oferece ao atleta a carnadura mais vigorosa. Gladiadores, samurais e mitos do boxe de todos os tempos não ignoraram esta discreta capoeira. 

O que passo a contar pode ser consultado na honorável biblioteca de Inverary, em Glasgow, onde estive na última virada de século a ler, com grande fervor, tudo sobre a trajetória e o mito de Aretha James Noftenhill. Esguia boxeadora estadunidense de ascendência dominicana, ela dominou com assombrosa facilidade os campeonatos nacionais e internacionais de médio-ligeiras da primeira metade da década de setenta. E inscreveu seu nome no folclore dos ringues graças ao inusitado método em que se esmerou para aliciar o tempo. 

O misterioso fim da vida de Noftenhill é motivo de apaixonada polêmica entre velhos fãs de boxe de todo o mundo. Ela não era bela, os olhos demasiado pertos um do outro e os lábios assimétricos a prejudicavam; mas compunham hipnótica a face da fera, “olhos de tigre numa cara de gorila.” Bailarina dos ringues, boxeava como um anjo, com graça e violência.   

A uma edição do Chicago Press hoje amarelenta o lendário Cassius Clay, tendo assistido a dois combates de Aretha James, declarou que ela, para receber um soco inevitável; “recuava e cedia o corpo com a resignação da água que acolhe o mergulhador.” 

Quando se preparava para a terceira defesa do título nacional – dessa vez contra uma ruivinha empertigada de Kentucky – Aretha James revelou ao Illinois Magazine que não saía de casa sem levar, no bolso esquerdo da camisa, o velho roscofe herdado do avô materno. Era o começo do mito. Uma fotografia de quarto de página, em preto e branco, eternizou a diminuta máquina na memória dos fãs da lutadora. O roscofe tinha mesmo uns ares respeitáveis de eternidade, numerais romanos e adornos arabescos prenunciavam o tatibitate pesado e seguro. Com ele Aretha trabalhava em silêncio, no dia a dia, o compasso da respiração. Lutar, para ela, foi um sacerdócio. 

Encerrada a quinta temporada vitoriosa, a crônica esportiva comemorou Aretha James Noftenhill caçando a alcunha de “meteórica” que a acompanhara desde o início da carreira. Nas páginas de um Washington Post de sábado o polêmico cronista Ted Murdoch brincou a respeito do destino de cair dos meteoros, “tão diverso dos calcanhares alados de Aretha James, cujos pés bailarinos, em ação, pouco tocam o chão dos ringues.” 

A notícia da intempestiva aposentadoria da lutadora atingiu os comentaristas esportivos em pleno voo, obrigando-os girar em torno de si aos olhos do público feito panquecas na frigideira. A versão oficial, apresentada em coletiva de imprensa em junho de 1976, creditou a aposentadoria a terríveis dores nos joelhos; dado que, sem convencer, acentuou o mistério sobre o desenredo da lutadora. 

Uma biografia não autorizada, de edição grosseira e produzida à toque de caixa, faturou alto conspirando sobre o enlouquecimento da campeã. Exilada em seu tempo fleumático inventado ela teria oscilado entre a paranoia e a melancolia por meses a fio.

A capa do The New York Times de 19 de setembro de 1976 destacou em foto noturna um similar ao rijo e improvável Ford TT 1946, preto, que veio do passado e atravessou a madrugada para atropelar Aretha James Noftenhill num cruzamento ermo de Chicago. Por três dias e três noites a vida, a febre e a morte disputaram-na no leito do hospital. 

Nos bares e nos ginásios, à boca pequena, a morte de Noftenhill foi atribuída ao submundo das apostas. Com os boatos, a biografia não autorizada logo caiu no esquecimento. 

Norman Mailer assinou o perfil mais afamado de Noftenhill, publicado na ducentésima terceira edição de The People. O laureado escritor anotou que na noite em que a morte veio para levá-la uma chuva calma e obstinada lavou Chicago; “Noftenhill pegou o carro disposta a fugir de casa, da cidade, de sua vida. Levou consigo, numa caixa de sapatos, o roscofe, um lenço branco de bolso com quatro níqueis furados amarrados nas pontas e meia dúzia de lembranças menores do boxe. Mas não foi muito longe. Tendo abandonado o carro nas imediações da academia, um chapéu preto de aba larga galgou sua cabeça e ela se pôs a caminhar até a esquina. Então parou. Ergueu a gola da longa casaca de gabardine, sacou da caixa o roscofe, colocou-o no bolso esquerdo e ganhou a rua sem olhar para os lados.” Muitos criticaram o estilo telegráfico de Mailer.

Aretha James Noftenhill foi uma corsa leve, ágil e selvagem.


Croniqueta do livro "Eu, anão do meu jardim". 

À venda em bares e revistarias tricoronárias, ou por meio do e-mail renatodebrito@gmail.com . 

sábado, 2 de janeiro de 2016

Acabar com as obras-primas


Antonin Artaud


Por Antonin Artaud (1925)

Uma das razões da atmosfera asfixiante, na qual vivemos sem escapatória possível e sem remédio – e pela qual somos todos um pouco culpados, mesmo os mais revolucionários dentre nós -, é o respeito pelo que é escrito, formulado ou pintado e que tornou forma, como se toda expressão já não estivesse exaurida e não tivesse chegado ao ponto em que é preciso que as coisas arrebentem para se começar tudo de novo. É preciso acabar com a ideia das obras-primas reservadas a uma assim chamada elite e que a massa não entende; e admitir que não existe, no espírito, uma zona reservada, como para as ligações sexuais clandestinas. As obras-primas do passado são boas para o passado, não para nós.

Temos o direito de dizer o que foi dito e mesmo o que não foi dito de um modo que seja nosso, imediato, direto, que responda aos modos de sentir atuais e que todo o mundo compreenda. É idiotice censurar a massa por não ter o senso do sublime, quando se confunde o sublime com uma de suas manifestações formais que são, aliás, e sempre, manifestações mortas. E se, por exemplo, a massa de hoje já não compreende Édipo-Rei, ouso dizer que a culpa é de Édipo-Rei e não da massa. Em Édipo-Rei há o tema do Incesto e a ideia de que a natureza zomba da moral; e que em algum lugar há forças errantes com as quais seria bom tomar cuidado; que se dê a essas forças o nome de destino ou outro qualquer. Além disso, há a presença de uma epidemia de peste que é uma encarnação física dessas forças. Mas tudo isso sob disfarces e numa linguagem que perderam qualquer contato com o ritmo epiléptico e grosseiro deste tempo. Sófocles talvez fale alto, mas com modos que já não são desta época. Ele fala fino demais para esta época, e parece que ele fala de lado.

No entanto, a massa que as catástrofes de estradas de ferro fazem tremer, que conhece os terremotos, a peste, a revolução, a guerra; que é sensível às agonias desordenadas do amor, consegue alcançar todas essas elevadas noções e só pede para tomar consciência delas, mas com a condição de que se saiba falar sua própria linguagem e do que a noção dessas coisas não lhe chegue através de disfarces e palavras adulteradas, pertencentes a épocas mortas que nunca mais poderão ser retomadas. A massa, hoje como antigamente, é ávida de mistério; ela pede apenas para tomar consciência das leis segundo as quais o destino se manifesta e, talvez, adivinhar o segredo de suas aparições. Deixemos aos peões a crítica de textos, aos estetas a crítica de formas e reconheçamos que o que já foi dito não está mais por dizer; que uma expressão não vale duas vezes, não vive duas vezes; que toda palavra pronunciada morre e só age no momento em que é pronunciada, que uma forma usada não serve mais e só convida a que se procure outra, e que o teatro é o único lugar do mundo onde um gesto feito não se faz duas vezes. Se a massa não vai às obras-primas literárias é porque essas obras-primas são literárias, isto é, fixadas; e fixadas em formas que já não respondem às necessidades do tempo. Longe de acusar a massa e o público, devemos acusar o anteparo formal que interpomos entre nós e a massa, e essa forma de idolatria nova, essa idolatria das obras-primas fixadas, que é um dos aspectos do conformismo burguês. Esse conformismo que nos faz confundir o sublime, as ideias, as coisas com as formas que tomaram através do tempo e em nós mesmos – em nossas mentalidades de esnobes, de preciosos e estetas que o público já não compreende.

Nisso tudo, será inútil acusar o mau gosto do público que se deleita com insanidades, enquanto não se mostrar ao público um espetáculo válido; e desafio a que me seja mostrado aqui um espetáculo válido, e válido no sentido supremo do teatro, depois dos últimos grandes melodramas românticos, isto é, há cem anos. O público que toma o falso por verdadeiro tem o senso do verdadeiro e sempre reage diante do verdadeiro quando colocado à sua frente. Não é porém em cena que se deve procurá-lo hoje, mas na rua; e, ofereça-se à massa das ruas uma ocasião para mostrar sua dignidade humana, que ela a mostrará. Se a massa se desacostumou de ir ao teatro; se acabamos todos por considerar o teatro como uma arte inferior, um modo de distração vulgar, e por utilizá-lo como exutório para nossos maus instintos, foi por tanto nos dizerem que isso era teatro, ou seja, mentira e ilusão. Foi por nos habituarem desde há quatrocentos anos, desde a Renascença, a um teatro puramente descritivo e narrativo, que narra a psicologia. Foi porque se empenharam em fazer viver, em cena, seres plausíveis mas desligados, com o espetáculo de um lado e o público do outro – foi por se mostrar à massa apenas o espelho daquilo que ela é. O próprio Shakespeare é responsável por esta aberração e degradação, por essa ideia desinteressada do teatro que quer que uma representação teatral deixe o público intacto, sem que uma imagem lançada provoque qualquer abalo no organismo, imprimindo nele uma marca que não mais se apagará.

Se em Shakespeare o homem às vezes se preocupa com aquilo que o ultrapassa, trata-se sempre, definitivamente, das conseqüências dessa preocupação no homem, isto é, a psicologia. A psicologia que se empenha em reduzir o desconhecido ao conhecido, ou seja, ao cotidiano e ao comum, é a causa dessa diminuição e desse desperdício assustador de energia, que me parece ter chegado ao último grau. E me parece que tanto o teatro como nós mesmos devemos acabar com a psicologia. Creio, aliás, que a esse respeito estamos todos de acordo e que não é preciso descer até o repugnante teatro moderno e francês para condenar o teatro psicológico. Histórias de dinheiro, de angústias por causa de dinheiro, de arrivismo social, de agonias amorosas onde o altruísmo nunca interfere, de sexualidades polvilhadas de um erotismo sem mistérios não são do domínio do teatro quando são psicologia. Essas angústias, esse estupro, esses cios diante dos quais somos apenas voyeurs que se deleitam, acabam em revolução e em azedume: é preciso percebê-lo. O mais grave, porém, não é isso. Se Shakespeare e seus imitadores nos insinuaram através dos tempos uma ideia da arte pela arte, com a arte de um lado e a vida do outro, podíamos ficar tranquilos com a ideia ineficaz e preguiçosa enquanto a vida lá fora se mantinha.

Mas agora vemos muito bem os sinais indicadores de que o que nos mantinha vivos já não se mantém, de que estamos todos loucos, desesperados e doentes. E eu nos convido a reagir. Esta ideia de arte desligada, de poesia-encantamento que só existe para encantar o lazer, é uma ideia de decadência e demonstra claramente nossa força de castração. Nossa admiração literária por Rimbaud, Jarry, Lautréamont e alguns outros, que levou dois homens ao suicídio mas que para os outros se reduz a papinhos de bar, faz parte da ideia da poesia literária, da arte desligada, da atividade espiritual neutra, que nada faz e nada produz; e constato que foi no momento em que a poesia individual, que só compromete aquele que a faz e no momento em que a faz, grassava da maneira mais abusiva que o teatro foi mais desprezado por poetas que nunca tiveram o senso nem da ação direta e em massa, nem da eficácia, nem do perigo. É preciso acabar com a superstição dos textos e da poesia escrita. A poesia escrita vale uma única vez e, depois, que seja destruída. Que os poetas mortos cedam lugar aos outros. E poderíamos mesmo assim ver que é nossa veneração diante do que já foi feito, por mais belo e válido que seja, que nos petrifica, que nos estabiliza e nos impede de tomar contato com a força que está por baixo, quer ela seja chamada energia pensante, força vital determinismo das trocas, menstruação da lua ou o que bem se entender. Sob a poesia dos textos existe a poesia tout court, sem forma e sem texto. E, tal como se esgota a eficácia das máscaras que servem às operações de magia de certos povos – e então essas máscaras só servem para serem jogadas nos museus -, do mesmo modo se esgota a eficácia poética de um texto, e a poesia e a eficácia do teatro é a que se esgota mais lentamente, uma vez que admite a ação do que se gesticula e se pronuncia e que nunca se reproduz uma segunda vez. Trata-se de saber o que queremos.

Se estamos prontos para a guerra, a peste, a fome e o massacre, nem precisamos dizer nada, basta continuar. Continuar nos comportando como esnobes e a nos locomover em massa para ver este ou aquele cantor, este ou aquele espetáculo admirável e que não ultrapassa o domínio da arte (e os bales russos mesmo no momento de seu esplendor nunca ultrapassaram o domínio da arte), esta ou aquela exposição de pintura de cavalete onde explodem aqui e ali algumas formas impressionantes mas casuais e sem uma consciência verídica das forças que poderiam acionar. É preciso parar com esse empirismo, esse acaso, esse individualismo e essa anarquia.

Basta de poemas individuais e que servem muito mais a quem os faz do que a quem os lê. Basta, de uma vez por todas, de manifestações de arte fechada, egoísta e pessoal. Nossa anarquia e nossa desordem espiritual são função da anarquia do resto – ou melhor, é o resto que ó função dessa anarquia. Não sou dos que acreditam que a civilização deva mudar para que o teatro mude; mas creio que o teatro utilizado num sentido superior e o mais difícil possível tem a força de influir sobre o aspecto e a formação das coisas: e a aproximação em cena de duas manifestações passionais, de dois núcleos vivos, de dois magnetismos nervosos é algo de tão integral, tão verdadeiro, tão determinante mesmo quanto, na vida, a aproximação entre duas epidermes num estupro sem amanhã. É por isso que proponho um teatro da crueldade. Com esta mania de rebaixar tudo o que hoje pertence a nós todos, « crueldade », quando pronunciei esta palavra, foi entendida por todo o mundo como sendo « sangue ».

Mas « teatro da crueldade » quer dizer teatro difícil e cruel antes de mais nada para mim mesmo. E, no plano da representação, não se trata da crueldade que podemos exercer uns contra os outros despedaçando mutuamente nossos corpos, serrando nossas anatomias pessoais ou, como certos imperadores assírios, enviando-nos pelo correio sacos de orelhas humanas, de narizes ou narinas bem cortadas, mas trata-se da crueldade muito mais terrível e necessária que as coisas podem exercer contra nós. Não somos livres. E o céu ainda pode desabar sobre nossas cabeças. E o teatro é feito para, antes de mais nada, mostrar-nos isso. Ou seremos capazes de retornar, através dos meios modernos e atuais, à ideia superior da poesia e da poesia pelo teatro que está por trás dos Mitos contados pelos grandes trágicos da antiguidade, e capazes mais uma vez de suportar uma ideia religiosa do teatro, isto é, sem mediação, sem contemplação inútil, sem sonhos esparsos, de chegar a uma tomada de consciência e também de posse de certas forças dominantes, de certas noções que tudo dirigem; e, como as noções, quando efetivas, trazem consigo suas energias, capazes de reencontrar em nós essas energias que afinal criam a ordem e fazem aumentar os índices da vida, ou só nos resta nos abandonarmos sem reação e imediatamente, e reconhecer que só servimos mesmo para a desordem, a fome, o sangue, a guerra e as epidemias. Ou trazemos todas as artes de volta a uma atitude e a uma necessidade centrais, encontrando uma analogia entre um gesto feito na pintura ou no teatro e um gesto feito pela lava no desastre de um vulcão, ou devemos parar de pintar, de vociferar, de escrever e de fazer seja lá o que for.

No teatro, proponho a volta à ideia elementar mágica, retomada pela psicanálise moderna, que consiste, para conseguir a cura de um doente, em fazê-lo tomar a atitude exterior do estado ao qual o queremos conduzir. Proponho a renúncia ao empirismo das imagens que o inconsciente carrega ao acaso e que também lançamos ao acaso chamando-as de imagens poéticas, portanto herméticas, como se essa espécie de transe que a poesia suscita não repercutisse em toda a sensibilidade, em todos os nervos, e como se a poesia fosse uma força vaga e que não varia seus movimentos. Proponho a volta, através do teatro, a uma ideia do conhecimento físico das imagens e dos meios de provocar transes, assim como a medicina chinesa conhece, em toda a extensão da anatomia humana, os pontos que devem ser tocados e que regem até as funções mais sutis. Para quem se esqueceu do poder comunicativo e do mimetismo mágico de um gesto, o teatro pode reensiná-lo, porque um gesto traz consigo sua força e porque de qualquer modo há no teatro seres humanos para manifestar a força do gesto feito. Fazer arte é privar um gesto de sua repercussão no organismo, e essa repercussão, se o gesto é feito nas condições e com a força necessárias, convida o organismo e, através dele, toda a individualidade a tomar atitudes conformes ao gesto feito.

O teatro é o único lugar do mundo e o último meio de conjunto que nos resta para alcançar diretamente o organismo e nos momentos de neurose e baixa sensualidade, como este em que estamos mergulhados, para atacar essa baixa sensualidade através dos meios físicos aos quais ela não resistirá. Só a música age sobre as serpentes não é pelas noções espirituais que ela lhes traz, mas porque as serpentes são compridas, porque se enrolam longamente sobre a terra, porque seu corpo toca a terra em sua quase totalidade; e as vibrações musicais que se comunicam à terra o atingem como uma sutil e demorada passagem; pois bem, proponho agir para com espectadores como para com as serpentes que se encantam e fazer com que retornem, através do organismo, até as noções mais sutis. Primeiro através de meios grosseiros e que, com o tempo, tornam-se mais sutis. Esses meios grosseiros imediatos prenderão sua atenção de início. É por isso que no « teatro da crueldade » o espectador fica no meio, enquanto o espetáculo o envolve. Nesse espetáculo a sonorização é constante: os sons, os ruídos, os gritos são buscados primeiro por sua qualidade vibratória e, a seguir, pelo que representam. Nesses meios que se sutilizam, a luz, por sua vez, intervém. A luz que não é feita apenas para colorir ou iluminar e que traz consigo sua força, sua influência, suas sugestões. E a luz de uma caverna verde não coloca o organismo nas mesmas disposições sensuais que a luz de um dia de ventania. Depois do som e da luz vem a ação, e o dinamismo da ação: é aqui que o teatro, longe de copiar a vida, põe-se em comunicação, quando pode, com as forças puras. E, quer as aceitemos ou neguemos, há um modo de falar que chama de forças o que faz nascer no inconsciente imagens enérgicas e, no exterior, o crime gratuito. Uma ação violenta e densa é uma similitude do lirismo, invoca imagens sobrenaturais, um sangue de imagens, e um jorro sangrento de imagens tanto na cabeça do poeta quanto na do espectador.

Sejam quais forem os conflitos que assombram a mente de uma época, desafio um espectador ao qual cenas violentas tenham passado seu sangue, que tenha sentido em si a passagem de uma ação superior, que tenha visto de relance em relatos extraordinários os movimentos extraordinários e essenciais de seu pensamento – a violência e o sangue colocados a serviço da violência do pensamento -, desafio esse espectador a entregar-se, exteriormente, às ideias de guerra, revolta e assassinato temerário. Dita desta maneira, essa ideia parece apressada e pueril. E muitos dirão que exemplo chama exemplo, que a atitude da cura convida à cura e a do assassinato, ao assassinato. Tudo depende do modo e da pureza com que se fazem as coisas. Há um risco. Mas que ninguém esqueça que um gesto teatral é violento, porém desinteressado; e que o teatro ensina exatamente a inutilidade da ação que, uma vez feita, não está mais por ser feita, e a utilidade superior do estado inutilizado pela ação mas que, voltado, produz a sublimação.

Proponho assim um teatro em que imagens físicas violentas triturem e hipnotizem a sensibilidade do espectador, envolvida no teatro como num turbilhão de forças superiores. Um teatro que, abandonando a psicologia, narre o extraordinário, ponha em cena conflitos naturais, forças naturais e sutis, e que se apresente antes de mais nada como uma excepcional força de derivação. Um teatro que produza transes, como as danças dos Derviches e Aissauas, e que se dirija ao organismo com meios precisos e com os mesmos meios que as músicas curativas de certos povos, que admiramos em discos mas que somos incapazes de fazer nascer entre nós. « »Há um risco, mas acho que nas circunstâncias atuais vale a pena corrê-lo. Não creio que consigamos reavivar o estado de coisas em que vivemos e nem creio que valha a pena aferrar-se a isso; mas proponho alguma coisa para sair do marasmo, em vez de continuar – a reclamar desse marasmo e do tédio, da inércia e da imbecilidade de tudo.

Escritos de Antonin Artaud, tradução, notas e prefácio de Claudio Willer, L&PM, 1983 e reedições

Palestra de Claúdio Willer sobre Artaud
(com episódio sobre palestra em S. Thomé das Letras)